Quem transita pela área central de Caxias do Sul possivelmente já observou ou conversou com Leandro Segalla de Bitencourt. Contudo, provavelmente não saiba que aquele homem em situação de rua era neto do artista plástico, político e metalúrgico caxiense Bruno Segalla. Ou que serviu de modelo para uma das esculturas do avô mais conhecidas da cidade; que tinha aptidão para atividades relacionadas às ciências exatas; e que sofria com um quadro de esquizofrenia.
Leandro vivia pelas ruas, entre veículos, solitário, há aproximadamente duas décadas. Costumeiramente dormia sob uma marquise na esquina das ruas Sinimbu e Dr. Montaury, no coração da cidade. Até que na manhã de segunda-feira (4), foi encontrado morto, aos 51 anos, no aterro sanitário Rincão das Flores, na localidade do Apanhador. A hipótese da Polícia Civil é que tenha ocorrido um acidente.
Uma das maiores apoiadoras da recuperação de Leandro das ruas era sua irmã, Patricie Segalla de Bitencourt Witt, 54. Ela acompanhou de perto o caçula desde o nascimento. Com a separação dos pais, Sandra Maria Segalla e Arnaldo Oliveira de Bitencourt, moraram boa parte da infância na casa do avô Bruno, na Rua Pinheiro Machado, entre as ruas Do Guia Lopes e Andrade Neves.
Esquizofrenia acentuada na adolescência
Apesar de o transtorno mental do irmão já mostrar sinais, ocasionando dificuldades de convivência, Patricie recorda de bons momentos ao lado de Leandro na infância. Uma das memórias preferidas remonta a almoços, aos domingos, em Galópolis, junto com o avô Bruno Segalla.
“Meu avô nos levava almoçar todos os domingos em Galópolis, em um restaurante no antigo lanifício. Todas as famílias da época iam para lá. Brincávamos, andávamos de bicicleta, tinha parque. Na época nos vestíamos parecido. Foi uma infância legal”, relembra.
Os irmãos frequentaram a Escola Estadual Presidente Vargas, no Centro. Leandro cursou até o 1° ano do Ensino Médio, na adolescência, período em que, segundo Patricie, enfrentou o ‘auge’ das crises de esquizofrenia.
“Ele desenhava muito bem, era muito bom em exatas, um cara inteligente. Eu cheguei a rodar (reprovar ano) e ele não”, brincou.
Modelo para estátua do Padre Giordani
Bruno Segalla era inspiração para o neto, que passou a acompanhá-lo em trabalhos como gravador (em peças metálicas). A dupla produzia peças para empresas da região, como a Grendene.
O legado do artista plástico para Caxias reúne obras como Instinto Primeiro, escultura em bronze exposta na Praça Dante Alighieri desde 1997; e os monumentos Direitos Humanos, instalado na Câmara de Vereadores; e Jesus Terceiro Milênio, imagem de 24 metros de altura junto aos Pavilhões da Festa da Uva, idealizada em 1991 e inaugurada em 2004.
A história pouco conhecida é a que Leandro foi essencial para a elaboração da estátua do Padre Eugênio Ângelo Giordani. A obra está situada no largo da Igreja São Pelegrino, cartão postal e referência para os fiéis na cidade. Patricie conta que o irmão serviu de modelo, vestido como autoridade religiosa, para que Bruno Segalla concebesse a imagem em bronze, de 2,40 metros de altura, em 1994.
“A altura do meu irmão correspondia com a do padre. Ele era forte, tinha mais ou menos o mesmo biotipo. Meu avô, quando fazia uma obra, não usava apenas foto, ele media altura, peso, e nós éramos os ‘fantoches’”, recorda.
Perdas do avô e da mãe
Patricie cita como pontos sensíveis, que podem ter influenciado a saída de Leandro para as ruas, as mortes do avô, em 2001, e da mãe, em 2006, familiares os quais o jovem tinha como referência.
Na fase adulta, conta a irmã, Leandro passou a ter condutas mais agressivas, decorrentes do quadro de esquizofrenia e do uso de drogas, o que teria impedido uma maior aproximação dela. Ainda assim, Patricie buscava encaminhá-lo para centros de reabilitação e casas de acolhimento, com apoio de órgãos da prefeitura.
“Nos últimos anos, depois que minha mãe faleceu, tivemos muitos desacordos, mas todos os anos eu internava ele. Devo ter mais de cem páginas de internações na Clínica Paulo Guedes. FAS, Caps, Pop Rua, todo mundo me auxiliou. Um mês depois de a minha mãe morrer, ele foi para a rua e nunca mais conseguiu ficar dentro de quatro paredes”, lamentou Patricie.
De acordo com a Fundação de Assistência Social (FAS), Leandro Segalla possui histórico de atendimento pelo órgão desde 2007, quando acessou o albergue municipal. Há registros de encaminhamentos para tratamento psiquiátrico e para casas de passagem, locais em que ele permanecia por poucos dias, conforme a FAS.
Memórias afetivas determinavam locais de permanência
Leandro era visto pelos caxienses, normalmente, no entorno das Lojas Magnabosco, próximo à Catedral Diocesana e à Praça Dante Alighieri. Outro ponto bastante frequentado por ele era Galópolis. As duas localidades, revela Patricie, possuíam um significado afetivo para o irmão, pois estavam ligados a memórias da infância com a mãe, Sandra Maria, e com o avô, Bruno Segalla.
“Em Galópolis, porque foi onde se passou a infância dele. Na Magnabosco, quando minha mãe era advogada, ela trabalhava na esquina do fórum, onde fica a delegacia. O escritório da mãe e o meu restaurante eram a uma quadra dali”, explica Patricie. “Ele passava todo dia também pela minha casa, na Pinheiro Machado. Ele ficava nesses pontos por causa da mãe, eram memórias de afeto”.
‘Ela já não vivia aqui nesse mundo’
A última conversa que Patricie teve com o irmão aconteceu na sexta-feira passada (1°). Após passar por nova internação, Leandro seria conduzido por uma equipe de assistência social do município à Casa de Acolhimento São Francisco. Entretanto, ele recusou.
“Ele me disse que queria ficar na rua, mas ele não havia saído bem da clínica, eu senti. Agradeço às pessoas que me ajudaram. Meu irmão era uma pessoa decente, de família, foi muito amado dentro do nosso lar. Que ele fique em paz, encontre o caminho com minha mãe. A vida que ele passava aqui não era para ele. Ele já não vivia aqui nesse mundo“, acrescentou.
Leandro Segalla de Bitencourt foi sepultado na manhã de quarta-feira (6), no Cemitério Público Municipal. No próximo domingo (10), ocorre a missa de sétimo dia, às 11h, na Catedral Diocesana.