Quero pôr em palavras o que foi o meu comentário em minha participação, todas às segundas-feiras, no Jornal da Manhã da Rádio Jovem Pan da Serra, fazendo um contraponto, a partir de um livro que li na semana que passou, escrito por Daniela Arbex e intitulado “Todo dia a mesma noite”.
Na obra, ela aborda a história não contada da Boate Kiss. Não são relatos jurídicos nem de conotação jurídica, nada disso…a autora faz um apanhado das dificuldades enfrentadas, naquela madrugada de 27 de janeiro de 2013, quando foram mortas 233 pessoas, a maioria jovens entre 20 e 30 anos, e, adiante, mais 9, em hospitais de Porto Alegre, totalizando 242 vítimas.
Além de relatar as dificuldades operacionais, falta de pessoal, equipamentos (inclusive respiradores) e logística para lidar com aquela situação que viria a ser considerada como o terceiro maior do planeta em número de vítimas, Daniela relata, não todos os casos, evidente, mas o drama pontual de alguns pais, mães e familiares enfim, para buscar notícias e localização de seus filhos, peregrinando de hospital em hospital, até reconhecerem os corpos no Centro Desportivo Comunitário de Santa Maria, para onde os mortos, pela insuficiência do IML, foram sendo levados.
Não há, nos casos relatados por Daniela, casos mais ou menos doloridos. Todos são carregados de sofrimento dilacerante, do tipo que nos faz olhar para os nossos problemas e ver que choramos de barriga-cheia. Pais não foram feitos para enterrar seus filhos, já disse isso aqui outro dia. Mas um deles, cujo subtítulo é “um encontro inesperado”, é objeto de nossa fala de hoje, em contraponto com outro episódio que ocorreu semana passada no Município de Alvorada.
No dia 26/01/2022, um médico plantonista do Hospital Universitário de Santa Maria havia ficado doente. Um amigo, cirurgião geral e torácico, médico experiente de 60 anos, foi cobrir o plantão do colega, sem imaginar o que estava por vir. Este profissional tinha um filho de 24 anos que também curava o último ano de Medicina em outro Estado, mas estava em Santa Maria em férias. Então, como experiência, o Médico pai convidou o quase-Médico filho para acompanhá-lo naquele plantão, só que o filho não foi. Preferiu aproveitar as férias. Não apareceu no Hospital Universitário.
Quando as primeiras vítimas começaram a chegar, o Médico-pai, professor adjunto da Universidade percebeu que o quadro era mais grave do que imaginava. Não eram queimaduras na grande maioria, mas insuficiência respiratória; as vítimas expeliam secreções pretas pela boca. Alguns, tinham borracha derretida fundida na pele. Muitos chegavam caminhando e, repentinamente, caíam desacordados. Eram muitos. Não havia respiradores para todos e era preciso entuba-los para não entrarem em falência respiratória por obstrução das vias aéreas.
Em meio ao caos, o telefone do Médico tocava insistentemente. Como parar e atender? Lá pelas tantas, ele identificou que era a filha. Atendeu e disse: “estou muito ocupado”, ao que ela respondeu: “Pai, fulano (o irmão) estava na Boate Kiss…”
O rapaz estava; socorrido, foi levado para o Hospital de Caridade de Santa Maria. A mãe, com o próprio carro, trasladou a vítima para o Hospital Universitário para ser atendido pelo pai. Naquele momento, ele não pode ser pai: teve de ser médico e entubar o filho que tentava resistir, quando o Médico foi enfático: Entuba ou tu morres.
Já em Alvorada, no último dia 13 de dezembro, David da Silva Lemos, de 28 anos, pode ser pai, mas foi algoz; escolheu ser o carrasco de seus quatro filhos, o dia em que as crianças haviam ido visitá-lo, pois estava separado da mãe delas.
Por que fez isso? Para infligir dor e sofrimento na mãe delas, como castigo, porque ele não aceitava a separação. Como fez isso? Primeiro, David teria dopado as crianças, para diminuir-lhes a capacidade de resistência. Depois, para ter certeza de que estavam mortas, as teria golpeado a facadas. Sem compaixão.
Agora, pergunto, será real ou só retórica a ideia de que todos são dotados de humanidade?
Indago, porque, para mim, um pai que, pelo motivo e forma acima, mata seus quatro filhos para infligir sofrimento na mãe, a mulher que não lhe quer mais, é uma “besta” em forma humana, mas já desprovido de humanidade. Não há resposta penal suficiente para o caso na legislação brasileira. A Silvia, mãe, diria que ele merece nada menos que morrer também. Mas como eu não sou ele e sou jurista, que o Estado lhe assegure o devido processo.
Quanto ao Médico que não pode ser pai, queria dizer expressar, embora já passados quase dez anos, minha admiração dizendo que foi pai de muitos; a própria expressão da solidariedade, e que tenha a certeza de que o mundo seria muito melhor se nele houvesse mais pessoas assim.