Na última segunda-feira, em minha participação semanal da Rádio Jovem Pan da Serra, eu falei dessa história e observei a importância de vermos que algumas coisas parecem nos dias dia hoje como eram há décadas. Referia-me a uma vida retratada em um livro.
É que, entre 15 de julho de 1955 e 1º de janeiro de 1960, Carolina Maria de Jesus – que antes disso era anônima, ou melhor, invisível, só mais uma moradora da Favela de Canindé, em São Paulo – escreveu “Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada”.
Trata-se um pequeno livro formado por 20 diários escritos, editado e publicado por Audálio Dantas (jornalista que visitou a comunidade e se interessou por sua história); por muito tempo, lutou-se para que a obra de Carolina pudesse ser considerada “literatura”, pois vários críticos literários a consideraram um tipo de escrito sem relevância; uma literatura marginal.
Nela, Carolina mostra a dura realidade da favela, da fome, do racismo e da invisibilidade social, com uma escrita verdadeira e com uma linguagem simples: a história de sua identidade social e de milhões de brasileiros, que escancara a luta cotidiana pela sobrevivência. Carolina escrevia os diários como mecanismo de defesa de suas próprias chagas; como uma forma de escapar de seus problemas e, também, de fazer uma crítica social, embora eu desconfie que ela não tinha muita noção disso.
O Diário de Carolina, dividido em dia, mês e ano, narra como ela conseguia sobreviver sendo catadora de lixo e metal e como a falta de dinheiro e de outro tipo de trabalho afetavam a sua vida. Ela conta sua rotina vivendo de favelada e os sacrifícios que tinha que fazer para, como mãe solteira, criar os seus três filhos, alimentá-los e cuidar de tudo sozinha, tendo que lidar com o preconceito de não ser casada.
Um dos aspectos doloridos do Diário é o contexto da fome e da cor (parda) de Carolina. A autora fala que a pior dor era ver seus filhos passando fome, mesmo que ela trabalhasse, recebesse algumas doações e ainda catasse restos de alimentos nas feiras e até mesmo no lixo.
Um trecho muito chocante de Quarto de Despejo é quanto Carolina constata como a fome é diferente da embriaguez; segundo ela relata, muitos de seus vizinhos se embebedam para esquecer sua condição social, sua miséria e sua fome. Ela lamentava, porque a tontura do álcool impedia as pessoas de catar; mas, a tontura da fome nos faz tremer e ela percebia o quão é horrível ter só ar dentro do estômago.
Carolina expõe, também, a invisibilidade social, pois ela e seus filhos eram como pessoas invisíveis, ignoradas por aqueles que tinham melhores condições sociais e que não sentiam na pele a dor da violência e da pobreza. É nesse ambiente que a autora diz que escreve seus diários (em um diário que ela encontrou quando estava catando lixo) como uma forma de escapar um pouco da sua realidade, pois eles traziam esperança para ela e a faziam sonhar que, algum dia, alguém irá ler aqueles relatos e entender o que ela havia passado, tirando-a de seu status de invisível.
Em “Quarto de Despejo”, também podemos ver a importância da religiosidade para Carolina, que era motivada a não desistir; impulsionada a continuar sua rotina, mesmo com seu sofrimento por causa de suas crenças religiosas e sua fé. Além disso, a autora relata muitos problemas de seus vizinhos, denunciando a violência doméstica que as mulheres sofriam, principalmente, pelo alcoolismo de seus maridos.
Agora, pergunto: em 2022, os relatos de Carolina, em Quarto de Despejo, ainda é um retrato muito fiel das dificuldades enfrentadas não apenas nas favelas, mas pela imensa maioria dos brasileiros e por toda parte do mundo?
E, de certa modo, o Quarto de Despejo ainda reforça a importância da fé e da esperança de mudança: elas nos fazer acreditar e seguir andando apesar de tudo. Sonho com dias melhores, não para mim, mas pelas pessoas que, passados mais de 60 anos dos escritos de Carolina, a inda vivem a mesma dor, o mesmo sofrimento, a mesma luta e a mesma invisibilidade.