Memória LEOUVE

Consertam-se gaitas

Consertam-se gaitas

Por Juliano Fontaniove Dupont

A Todeschini era a mais famosa fábrica de gaitas do Brasil, produzindo mais de mil instrumentos por mês. Luiz Gonzaga visitava Bento Gonçalves com frequência e era recepcionado no lar da família Todeschini como uma eminência. A relação próxima do Rei do Baião com a cidade está registrada na música Garota Todeschini, que Gonzagão compôs em homenagem a uma secretária da empresa.

Chamado de gaita no Rio Grande do Sul e sanfona no nordeste, o acordeão é o instrumento mais desbragadamente popular. Ele canta como um pândego exaltado e chora como um poeta melancólico mas intenso, porque não é um instrumento para sentimentos discretos. Se o piano foi um instrumento criado para o frio do norte europeu, para ser colocado na salão de aristocratas e burgueses abastados, a gaita faz dupla com o violão como os instrumentos populares por execelência – mais mediterrâneos e tropicais, podem ser levados para o quintal, para a rua, para a praça e marcar presença em qualquer festança.

A Fábrica de Acordeões Todeschini pegou fogou em 13 de agosto de 1971. Foi o incêndio que determinou a mudança de ramo da empresa, trocando as gaitas pelos móveis.

Algum tempo depois, o empresário fundador Luis Matheus Todeschini entregou a um de seus funcionários todas as peças e ferramentas que sobreviveram às chamas. Com parte do espólio da fábrica em mãos, Danilo Arcari associou-se a Lourival Cosme e Ivo Bondan para consertar acordeões. Desde então Arcari divide sua oficina com companheiros da época da Todeschini e da Scala. A Acordeões Scala era outra grande empresa de Bento Gonçalves, fundada e administrada por Sigismundo Henrique Dytz e Vitorio Gava. Trabalham com Danilo há muitos anos Eliz Rachele, Fiorentino Mattevi, Zemiro Zallamena e Alba Segatto Fin.

Muitos jornalistas escreveram nos últimos anos sobre os cinco amigos da Arcari Conserto de Acordeões. Admiram a oficina pelo que ela tem de nostálgico, antigo, como se ela fosse um instantâneo de um tempo que passou. É exatamente o oposto. A oficina é ao mesmo tempo contemporânea e um modelo para o futuro. Seus funcionários deixaram de ser operários para se transformarem em artesãos autônomos e criativos. Trocaram o fordismo pelo artesanato. Migraram da indústria para um oficina renascentista – uma corporação de ofício, como lembrou Carlos André Moreira em artigo publicado sobre o grupo.

Na indústria o trabalhador realiza apenas uma parte de todo o processo de fabricação do que quer que seja e perde a idéia do conjunto. Aliena-se do próprio trabalho. Na oficina de Danilo Arcari, o trabalho também é dividido, especializado por etapas no reparo das gaitas, mas os amigos trabalham colaborativamente, participando um do trabalho do outro.

Para Danilo Arcari, os teclados eletrônicos foram os responsáveis pela queda de vendas e fabricação de acordeões. Com o surgimento do rock, a indústria dos instrumentos eletrônicos cresceu em qualidade e volume de produção, barateando o preço. O Rio Grande do Sul possuía dezenas de fábricas de gaitas que, como a Todeschini e a Scala, a partir dos anos 60, foram desligando suas máquinas. A oficina de Arcari acreditou na manutenção dos instrumentos acústicos. Agarrando-se ao que muitos achavam que era passado, chegou firme e forte ao futuro. A gaita retornou com mais intensidade tanto nos gêneros populares do forró e sertanejo quanto na música instrumental brasileira e no jazz.

Se em 1971 a oficina parecesse retrógrada em comparação com a industrialização crescente, quarenta anos depois a Arcari Conserto de Acordeões mais se parece com uma empresa de jovens descolados, que, além do lucro, procuram satisfação, prazer e liberdade na ocupação que escolheram para ganhar a vida. A surpresa é que nenhum dos artesãos têm menos de 70 anos.

Os cinco amigos são apaixonados pelo que fazem. Trabalham com camaradagem e alegria. Muito além da sobrevivência ou do dinheiro, o trabalho é a realização pessoal, uma maneira de fazer amigos, negócios, festas, encontros. O horário não é rígido, os funcionários não estão presos, podem tratar de coisas pessoais durante o horário de expediente.Os consertos são feitos com capricho – palavra muito repetida por Arcari ao falar do trabalho que realizam.

A oficina parece pré-capitalista, mas em verdade é pós-capitalista. Ela não existe para aumentar a produção, gerar mais riqueza, aumentar os lucros. A Arcari Conserto de Acordeões está aí para aumentar a felicidade do mundo.

Dá gosto de ver. E agora todos poderão assistir essa história no filme Consertam-se Gaitas, produzido pelo Núcleo Audiovisual da Faculdade Cenecista de Bento Gonçalves. Dirigido por Ana Cris Paulus, Boca Migotto e Felipe Gue Martini, o documentário foi premiado no Festival de Gramado no último domingo. Será exibido neste sábado, dia 15 de agosto, no programa Curtas Gaúchos, depois do meio-dia.

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