Memória LEOUVE

De modelo para nós mesmos

De modelo para nós mesmos

É mesmo muito legal ter orgulho da terra em que a gente nasce ou onde a gente escolheu viver, honrar tradições campeiras, o churrasco, o chimarrão, a música, a dança, a roupa, os costumes. Também é bem legal ver que qualquer criança de sete anos já sabe cantar o hino riograndense e tal. Mas, certamente, não é legal cultuar um mito de valores positivos que só existe na imaginação e não resiste à primeira aula de história.

 

Não. O problema não é comemorar uma guerra, nem mesmo comemorar uma guerra que a gente perdeu. Os paulistas também tem um feriado pra comemorar uma guerra perdida. O problema é que por aqui a coisa e mais forte, e durante uma semana a gente acha que nossas façanhas devem mesmo seguir de exemplo a toda terra, mesmo sem saber de verdade a que façanhas nos referimos.

 

É a nossa perigosa invenção de superioridade, onde tudo por aqui é diferente e é melhor. De certa maneira, é isso que comemoramos hoje, o mito da superioridade gaúcha. E o problema é que é muito mito pra pouca realidade. Ora bolas, é evidente que somos em alguns pontos bem diferentes do resto do país, mas isso nem de longe signifca dizer que somos melhores. E nem piores. Porque não somos.

 

Somos forjados numa cultura fronteiriça de intercâmbio com a América espanhola, e ao mesmo tempo, num estado contínuo de combates, violência e mobilização militar. Essa característica exigia líderes fortes e de mão firme, o que explica o surgimento dos caudilhos. O problema é que os caudilhos mantinham essa mão de ferro também na paz, porque não se podia desmobilizar.

 

E é exatamente aí que surge essa ideia do gaúcho como homem forte, bravo, destemido e violento, inclusive. Gaúcho não leva desaforo pra casa. E ai de quem reclame que ele anda com o facão na cinta. E até hoje é assim, porque tem gente que acha normal andar com um facão na cintura nesses festejos de setembro.

 

Olha, é mais do que natural que todos os povos do mundo produzam mitos, o que é, inclusive, absolutamente saudável. O problema é se agarrar no mito e esquecer da história. Uma história carregada de sangue, de traições, de massacres e degolas, de defesa da escravidão.

 

Uma história que veste uma roupagem de luta pela república, pela igualdade, pela liberdade e pelo humanismo quando na verdade se lutava apenas para defender os interesses econômicos de estancieiros.

 

A Guerra dos Farrapos nunca foi uma revolução, nunca foi uma revolta de todos, nunca foi um levante popular contra os poderosos de plantão. Ao contrário. No fim da peleia, os líderes farrapos saíram mais ricos, com mais terras e mais escravos do que entraram. E para o povo nada mudou.

 

Por isso, não podemos seguir comemorando uma história que a maioria de nós desconhece. O orgulho dos gaúchos pelo Rio Grande do Sul é louvável. Mas um povo que estufa o peito pra falar da tradição tem o dever moral de saber o que está celebrando. Porque, certamente, o que tu está celebrando não é nem de perto os ideais pelos quais os líderes farrapos nos levaram à luta.

 

Pra mim, o 20 de setembro deve seguir cultuando a tradição campeira, mas não os valores inventados de uma história sempre não contada. O que devemos cultuar hoje, e sempre, é a história real que fez da gente uma terra de resistência e de construção na luta, uma terra de gente que erra tanto quanto acerta, mas principalmente, uma terra que se reconhece em suas vitórias e em suas derrotas.

 

Pra que aí sim, as nossas façanhas possam servir de modelo… ao menos para nós mesmos.