Memória LEOUVE

Comida e Cinema Italiano

Comida e Cinema Italiano

Escrito por Juliano Fontanive Dupont

Caetano Veloso, em seu livro de memórias Verdade Tropical, lembra que, durante a infância nos anos 50, apenas no cinema italiano encontrava pessoas de verdade, em carne e osso, porque, ao contrário do cinema americano, nos filmes italianos as pessoas faziam coisas comuns: gritavam, sujavam-se e comiam. Comiam muito, e o músico baiano ajunta, mais ou menos assim: “Não só comiam, mas falavam enquanto comiam”, coisa que não se via no cinema de Hollywood daquele tempo.

Existem algumas imagens emblemáticas do cinema italiano. A mais famosa é, ou era, a de Alberto Sordi comendo um espaguete, extraída de “Um Americano em Roma” (1954), que se encontra em sites, muros, postais, bottons, revistas, por toda parte. Sordi interpretou durante décadas o italiano comum, oriundo de uma classe média baixa que ascendeu a partir do pós-guerra, um tanto malandro, outro tanto idiota. Não é acaso que seja justamente ele a simbolizar a Itália daquele período.

Há muitos outros filmes em que a comida desempenha um papel importante na narrativa. “Os Eternos Desconhecidos” (1958), de Mario Monicelli, é considerado o filme que inaugurou a chamada comédia all’italiana, um gênero cinematográfico que fazia humor de situações nada cômicas. Nele, um grupo de ladrões desastrados tenta a todo custo realizar um assalto espetacular – atravessar um velho casarão por dentro para chegar até o banco que se encontra no térreo do palácio. Quando, depois de uma série de episódios desastrados na execução do mirabolante roubo, o grupo de trapalhões miseráveis não consegue chegar até o cofre do banco e se limita a comer, no apartamento invadido, há poucos metros do cofre que seria a panaceia financeira de suas vidas, a única coisa que encontraram por lá: uma panela de feijão, que será dividida entre todos.

Dois filmes muito amargos se desenvolvem em torno à mesa e à comida: “Parente é Serpente” (1992), um dos momentos mais ácidos de Monicelli, trata da reunião de uma família na semana festiva entre o Natal e o Ano Novo; e o grotesco “A Comilança” (1973), de Marco Ferreri, em que quatro amigos se reúnem para comer até morrer em uma série de orgias gastronômicas. Na alegoria da sociedade de consumo de Ferreri, o alimento, preparado em pratos refinadíssimos, transforma-se em instrumento de suicídio.

Um filme sobre a beleza de se de viver – e comer – juntos, tomando a mesa como uma metáfora da vida e da alegria de viver em sociedade, é “O Jantar” (1998), de Ettore Scola, que transcorre por inteiro dentro de um restaurante romano. Cada grupo de convivas reunidos diante da mesa é um um núcleo narrativo, compondo, cada um, as multitramas do restaurante em “O Jantar”.

Amarcord” (1973), o filme de Federico Fellini sobre a infância, é um afresco sobre a vida de uma província durante o fascismo. Passada a cena de abertura, assistimos a um inesquecível almoço em família. A cozinha para Fellini é o palco da vida familiar, e a peça em cartaz tem os gêneros misturados – como um ensopadinho: comédia, drama e tragédia encenadas diante da mesa.

Todas as formas de afeto e loucura que temperam as relações humanas podem se apresentar em torno às refeições. Ou podiam, quando, nos bons tempos do cinema italiano, diretores humanistas nos contavam histórias de pessoas que gritavam, sujavam-se e comiam. E que falavam enquanto comiam.

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