Caxias do Sul

Lanceiros Negros e sua contribuição para a história do Rio Grande do Sul

Uma parte que ficou "oculta" na história do RS, mas que teve participação intensa desde antes da Guerra dos Farrapos

(Foto: Luiz Chaves/Divulgação)
(Foto: Luiz Chaves/Divulgação)

Neste 20 de setembro se comemora mais um Dia do Gaúcho, ou seja, relembramos o início de um conflito denominado Guerra dos Farrapos. Uma história que passa de geração em geração desde 1835, e claro, relembra o orgulho do povo gaúcho e suas tradições carregadas desde muito antes dessa revolução. Mas, há uma parte dessa história que ficou “oculta” para muitos. O Grupo de Lanceiros Negros, os homens escravizados da época, que não só lutaram pela sua sobrevivencia como também pela promessa de serem libertos em meio a essa guerra, e tiveram um papel importante de participação mas pouco contada desde então. Mas antes, para entendermos a constituição do grupo, vamos relembrar o período que se comemora hoje.

Afinal, o que foi e qual o objetivo da Revolução Farroupilha, ou como é mais conhecida, Guerra dos Farrapos? Por que ela se fez necessária na época? O período foi exatamente o início de uma guerra civil, a qual vitimou muitas pessoas e que durou por um longo período, sendo um dos conflitos armados mais duradouro na história do país.

O professor da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Ramon Tissot, mais precisamente docente da História do Rio Grande do Sul, relembra o episódio ocorrido em setembro de 1835, data que marca o início da guerra. Ele ressalta que o ato foi protagonizado por uma pequena parte da população do estado, descontentes com a forma de governo na época. “Basicamente, foram alguns proprietários de terras dessa parte que veio a ser depois o Rio Grande do Sul, que estavam descontentes com os rumos políticos, econômicos, enfim, e eles queriam um pouco mais de autonomia e ter mais ingerência sobre as decisões políticas referentes a esse território. Eles fizeram uma revolta contra o Império Brasileiro, reivindicando essas condições. Mas, em momento algum foi exatamente uma revolução no sentido de buscar uma transformação radical, da parte da sociedade que exercia o controle político. Não houve uma tentativa de substituição da elite política, da classe dirigente, de uma por outra, pois os revoltosos de alguma forma faziam parte da classe dirigente, já tinham muito poder econômico e político, mas eles queriam mais. E como uma forma de pressão para conquistar essas reivindicações, foram se armar e promoveram esse conflito armado contra as forças institucionais do Império.”

Com isso, os homens escravizados participaram do conflito. Inicialmente foram capturados das fazendas em que os proprietários eram favoráveis ao governo pelos Farroupilhas, sendo introduzidos nas tropas com a promessa de receberem sua alforria, ou seja, sua liberdade.

Como integrante-líder do Corpo de Lanceiros Negros de Caxias do Sul, grupo recriado na cidade em 2022 para relembrar a importância do negro nessa guerra e na construção da história Rio-grandense, Sérgio Ubirajara conta sobre o ato da captura dos escravos bem como a incorporação deles aos soldados Farrapos.“Os Lanceiros Negros é a imagem do negro afro-gaúcho na sua contribuição na Charqueadas, principalmente a sua visibilidade negra na mão de obra. Posteriormente, o país entra em conflito e é recrutada uma força extra de soldados. E nessa força extra é prometido aos negros a liberdade e eles se somam aos indígenas no pelotão dos Lanceiros e às pessoas menos afortunadas, que seriam os pobres da época. Vai se constituindo então um Corpo de Lanceiros com uma promessa de liberdade, e apenas isso os levou para à guerra. E a contribuição do negro ali foi à frente das fileiras, servindo como buchas de canhão, e só tinham armas rudimentares, como lanças improvisadas. As primeiras eram, inclusive, chamadas de “lanças queimadas”, que eram feitas de madeira e queimavam, passavam esterco para que quando atingisse um soldado inimigo ou ele morresse pelo ferimento da lança ou pela química do esterco na ferida. Então esse era o Corpo de Lanceiros.”

“E um episódio que marcou muito isso, quando falamos muito sobre os Lanceiros Negros na história, é em função de uma traição que os líderes Farrapos cometeram contra esses soldados negros, pois eles foram vítimas de uma emboscada, e os próprios líderes e comandantes das tropas Farrapas, desarmaram e criaram condições para que essa tropa específica, esse acampamento onde eles estavam alojados, pois eram alojamentos separados: os indígenas em um, o dos brancos e os negros em outro, que já indica essa segregação racial e étnica. O acampamento dos negros foi atacado por tropas imperiais com a ciência dos comandantes Farrapos, eles sabiam que o acampamento dos negros seria atacado e mesmo assim, eles não agiram para evitar isso, pois, é algo tão cruel como a história do Brasil e países colonizados costumam ser,  eles deixaram que os negros fossem atacados para que eles não se revoltassem contra os comandantes farrapos nem tampouco reivindicassem sua liberdade”, destaca o professor Ramon.

Os Lanceiros Negros também usavam uma vestimenta diferente das tropas dos Farrapos. A roupa do soldado negro era toda feita de contribuições de indígenas e outros povos. Sérgio destaca um pouco mais sobre essa indumentária do Lanceiro. “Esse colete que uso é um material à prova de adaga, pois ele é um soldado, é parecido com outras etnias que também usavam essa mesma vestimenta, o chiripá que é a contribuição indígena, e também temos a boleadeira que faz parte da indumentária e outros elementos que vamos acoplando. A vincha é o que simboliza o Lenceiro Negro, a vincha fica então na cabeça e na cintura e são vermelhas. Na cintura é onde se guarda a adaga que fica atrás.”

Sobre a invisibilidade do assunto e até mesmo a ocultação dessa história em muitos ambientes que ressalta a cultura gaúcha, Ubirajara relata que até mesmo escolas omitem essa parte ao falar da Guerra dos Farrapos. “A invisibilidade negra na história do Brasil é grande, as escolas inclusive omitem, até mesmo os “heróis”, não se fala do herói indígena do Rio Grande do Sul. O próprio Sepé Tiaraju quando ajudou a segurar a soberania nacional, no seu grito tradicional “Essa Terra tem dono”, e as escolas não enaltecem os verdadeiros heróis, preferindo outros que não são pessoas nativas daqui. Nativos quando referimos aos indígenas e negros, já nascidos em solo e terras do Brasil, que contribuíram, não só no RS como em todo o Brasil. O negro é um elemento civilizatório do povo brasileiro. O negro entra onde não tem estrada, onde não tem luz, onde não tem água, onde não tem as condições sanitárias a mão de obra escrava entra.”

“A explicação que hoje eu tenho a oferecer é que a identidade Sul-riograndense foi constituída a partir de uma decisão de selecionar só a parte branca da história e excluir os negros e os indígenas. Inclusive, essa opção dentro de toda a história do Rio Grande do Sul, que é uma história de longa duração, de muitos anos, de muitos eventos, o que se resolveu pinçar como evento fundador da identidade do gaúcho foi essa guerra que é cheia de controvérsias, mas que os protagonistas foram todos brancos, homens, ricos. Existe uma intencionalidade de construir uma identidade do Sul-riograndense como um homem branco, bem sucedido, ordeiro, e apagar a diversidade que marca a realidade aqui do Rio Grande do Sul. A história do RS é marcada pela diversidade cultural, a diversidade étnica, desde o começo da nossa história”, ressalta Ramon ao ser questionado o porque dessa ocultação na história.

Esse foi o compromisso dos Lanceiros Negros e de tantos outros povos, de culturas e diversificação com o Rio Grande do Sul. Que sejam essas as façanhas a serem servidas como modelo, a toda a Terra. Sem exclusão, sem apagar uma das partes tão significativa e importante para a construção além do Estado, de um povo que se orgulha de suas identidades, de ser quem é, e por saber a origem do dia 20 de setembro relembrando os heróis da Guerra dos Farrapos.

A imagem abaixo retrata o Grupo de Lanceiros Negros, recriado em 2022 para representar os soldados que lutaram na Guerra dos Farrapos. O grupo hoje leva a história em todo o Rio Grande do Sul, ressaltando a força e a coragem dos que foram escravizados. (Foto – Luiz Chaves)

Confira as entrevistas completas com o Sérgio Ubirajara e Ramon Tissot: