Opinião

As opções profissionais que fiz

As opções profissionais que fiz

Quando eu era menina, criança mesmo, por vezes me perguntavam: “Silvinha, o que tu queres ser quando crescer?” Eu respondia, sem titubear: “Quero ser médica. E vou casar só quando eu tiver 25 anos (na época, isso importava dizer que me casaria quando já me encaminhava para a idade de ser uma ‘titia’, é dizer, já passando do ponto para arranjar marido).

Aquelas ideias não se confirmaram. Primeiro, porque me casei aos 19 anos. Mas eu fui determinada na escolha. Estou com o meu Apolo, deus grego (risos) até hoje. Porém, no que respeita a ser médica, embora eu seja uma pessoa que aprenda, de regra, tudo aquilo a que me proponha aprender, a vida foi me dando sinais, desde cedo, que essa ideia também não se concretizaria.

Primeiro, porque eu era a “Perguntolina”. Deus do Céu, isso já era sinal inequívoco de que havia nascido para alguma carreira jurídica. Um simples “não” tinha que vir acompanhado de uma longa motivação e fundamentação. Uma resposta simples era inútil, porque ela desencadearia muitas outras perguntas. E não adiantava mentir pra mim nem um “enrolation”, porque a danadinha tinha faro, como até hoje: puxo uma pena e sai a galinha inteira.

Segundo, porque, minha cachorrinha “Tuta” teve cria e eu vi o parto. Enquanto assistia aquilo, pensava: “É assim que a gente nasce? Credo! Não quero ter filhos nunca na minha vida. Deve doer demais…”.

Ver sangue me apavorava e apavora até hoje, menos no papel, em mídias, vídeos e filmes. Ao contrário, nas carreiras jurídicas, olhava e olho autos de necropsia e perícias de local de crime com muito profissionalismo.

Aprendi que o corpo morto fala muito, como fala o exame no entorno do crime. É tão importante conhecê-los profundamente que, só desse conhecimento, você pode saber se um acusado ou se uma testemunha está falando a verdade.

Sim, as lesões por projetil de arma de fogo, por exemplo, constatadas pelo médico-legista, vão nos dizer a distância da qual o disparo foi feito (tiro à distância, média distância, curta distância, tiro encostado ou à queima roupa. Se a vítima estava em pé, deitada ou sentada, parada ou em movimento, por exemplo; se teve lesões de defesa e até sinalizar para um eventual motivo passional de um homicídio.

O sangue (que, ao vivo e a cores, eu não consigo encarar) também nos diz muito, seja por acúmulo, gotejamento, arraste ou espargimento, para ficar em poucos exemplos. Ele nos indica uma série de conclusões: se a vítima morreu no local em que atingida; se andou depois de alvejada; se foi arrastada e, se o crime houver sido praticado com arma branca, o movimento realizado pelo autor do crime.

Descontruir uma mentira, então, não é difícil pra mim: se a pessoa alegasse que agiu para se defender, em disputa de arma fogo, eu dava uma olhadinha na necropsia e via que os tiros foram à distância, buenas, eu já sabia que o Tibúrcio estava mentindo, pois, à evidência, nenhuma arma atira em curva (risos).

Certa vez, fui ao IML, em Porto Alegre, acompanhar um exame necroscópico e passei mal: não nasci para ser médica. E tenho toda a humildade do mundo para reconhecer a minha limitação. Quando tinha dificuldades de interpretar um laudo necroscópico ou um exame de local de crime, não tinha o menor constrangimento em ir procurar, no IGP (não sou e nunca fui de restringir o meu trabalho ao gabinete) o perito e pedir: por favor, me explica.

Por vezes, a explicação do perito me mostrava a absoluta inconsistência da versão ou justificativa apresentada. Um desses casos, ainda lembro bem: levei a faca ensanguentada (sangue seco, tudo bem!) utilizada para matar a vítima e disse ao perito: “A versão do acusado é essa. Esse laudo e essa faca confirmam isso?”

Na oportunidade, ele me disse que absolutamente não. Que, pela necropsia, pela perícia de local de crime, pela trajetória do corte e pelo sangue, por contato naquela lâmina, nem o golpe se deu como dizia o acusado, tampouco ele estava na posição que disse estar. Era a Física revelando uma mentira.

Com essas diligências – eu sou diligente em tudo que faço -, consegui descontruir tese de suicídio, quando se tratava de homicídio; tese de estupro seguido de morte para estupro mais homicídio e assim por diante.

As tecnologias hoje permitem inclusive que as versões de acusados e testemunhas sejam confrontadas com animações em 3D, e que permitem, a seu turno, saber se, de onde estavam, poderiam ter agido ou visto o que dizem que fizeram e viram, recursos que também estão disponíveis aos acusados e suas Defesas. Tudo muito legal.

Confesso, contudo, que sou bem feliz em ter abortado a carreira de médica, mas, sim, optado pelas carreiras jurídicas que segui (atualmente, Advogada e Professora). Hoje, não queria estar na pele de um médico intensivista que, por falta de estrutura e UTIs, precisa decidir quem vai viver e que vai morrer, quase assumindo um papel de Deus (sou Cristã).

Também, não queria estar na pele de um juiz, desafiado a compelir o Poder Público a fornecer um tratamento em UTI, no atual momento, sabendo que, alcançar um direito fundamental a um signifique, no âmbito jurídico, também fazer o papel de Deus, decidindo, pela caneta e no âmbito do papel, sem conhecer o quadro como um todo, quem vai viver e que vai morrer.