O perrengue nosso de cada dia

Dia desses participei de um programa de rádio com mais 3 pessoas, sendo eu a única mulher. Debatendo sobre temas cotidianos, num determinado momento um dos participantes fala: Eu queria acampar, me aventurar, mas minha mulher, assim como a maioria das mulheres, não gosta de passar trabalho.

Minha reação na hora foi dizer que não se pode generalizar, que é uma questão de gosto e que eu por exemplo adoro acampar com meu marido, e gosto mesmo pela natureza, e não pelo trabalho que dá. Mesmo gostando, depois de alguns dias na natureza selvagem adoro chegar num hotel e tomar um bom banho e deitar num colchão de verdade, sem ter que engatinhar pra entrar no quarto, caminhar no escuro pelo mato pra ir ao banheiro de madrugada e acordar fedida com o sol torrando a barraca às 7 da manhã.

Só que aquela afirmação ficou comigo, e complementei mais tarde mentalmente: mulher não gosta de passar trabalho nos momentos de lazer porque já passa trabalho todos os dias e noites. Em casa, no trabalho, na escola, na vida social, seja onde for, a vida da mulher é uma sequência de apagar incêndio, tapar buraco e de correr do bicho que tenta te pegar, te comer, ou te bater.

O nosso perrengue não é uma diversão de um final de semana ou férias. A gente já vai dormir e acorda, depois de uma noite às vezes mal dormida, pensando em tudo que tem que fazer no dia atual e seguinte e no outro.

A gente acha que a vida não pode parar porque estamos cansadas ou com algum problema só nosso, o qual normalmente tentamos resolver sozinhas. Na vida da mulher, o problema de toda família é dela, enquanto o dela é só dela, e parece que a gente sempre está devendo alguma coisa, pois a nossa obrigação é sempre maior do que o nosso ser.

Lembro de uma entrevista de emprego numa grande empresa, onde passei para uma segunda fase, e me perguntaram, durante a dinâmica: surge uma viagem de trabalho de ultima hora e você tem que ir, mas a babá da sua filha avisa que está doente e não pode trabalhar o resto da semana, o que você faz? Eu que já vivi isso e, acostumada aos imprevistos que a mãe que trabalha fora de casa passa, rapidamente simulei uma solução pra simulação do entrevistador. As outras duas pessoas que estavam na dinâmica, homens, um deles também com filhos, responderam perguntas diferentes e relacionadas ao desempenho profissional deles, não à sua vida pessoal. Eu fui contratada e trabalhei na empresa por um final de semana, depois do chefe humilhar a maioria das mulheres do escritório e que estavam trabalhando, veja bem, num final de semana. Numa demonstração típica de poder vazio, os homens da equipe receberam piadas e estímulo para melhorarem. No final do dia, peguei minha bolsa e nunca mais voltei, avisando que eu não era a pessoa certa para o cargo.

Muitas coisas aconteceram comigo e com o mundo desde aquela saída dramática de uma empresa e chefes misóginos em 1998. Continuamos sim num mundo desigual, mas que, mesmo tardiamente, nos deu voz pelo resultado do nosso próprio gritedo, muitas vezes pejorativamente chamado de TPM ou surto psicótico de mulher louca.

Eu, você, nós todas ainda convivemos com desigualdades, preconceito e misoginia, pois as coisas não mudam rapidamente nem facilmente. Mas chegamos num momento de maior consciência e visibilidade da nossa condição e papel social e familiar, uma mudança necessária especialmente para conviver com homens que foram criados sendo servidos pela mãe e que já não encontram a mesma subserviência nas companheiras.

Desconfio ainda que os amigos que falam que mulher não gosta de passar trabalho, não passariam eles mesmos no teste do nosso perrengue diário, sem surtar ou querer fugir para as montanhas, sem se preocupar com nada além de jogar futebol, fazer churrasco e tomar cerveja.