Agora que já passou o carnaval, eu posso dizer que pelo menos dois aspectos me chamaram atenção no espetáculo protagonizado pelas escolas de samba do Rio no sambódromo da Marquês de Sapucaí. Um deles é que, com a torneira do dinheiro público fechada pela crise sem precedentes em terras cariocas, as escolas se reinventaram e provaram que é possível fazer a festa com criatividade e menos grana. O segundo é que foi-se o tempo em que os desfiles eram ferramenta de alienação do povo.
Ao contrário, o que se viu retratado na Sapucaí e no resultado final da apuração foi a vitória da crítica sobre o oba-oba e a alegoria de um Brasil real na avenida surpreendeu, chocou e encantou o mundo inteiro. As escolas de samba levaram para a avenida neste ano críticas sociais contundentes como já se viu em outros carnavais, no auge da ditadura militar e da censura e depois, também nos tempos das Diretas já.
Mas eu acho mesmo que o que mais surpreendeu este ano foi a crueza da exposição, sem alegorias, sem fantasias. Uma representação crua da violência e da corrupção que assolam o país. A campeã fez isso com maestria. Mas talvez tenha sido a ruptura do discurso único patrocinada pela escola que criticou as manifestações que levaram ao impeachment de Dilma, a reforma trabalhista e a figura vampirizada do presidente Michel Temer que subverteu uma ordem tácita e escancarou ao mundo a ideia de que um outro ponto de vista existe e também precisa ter lugar no debate verde-amarelo sobre as agruras tupiniquins.
É claro que a gente não pode esquecer que não há heróis e que há uma grande dose de hipocrisia nesses protestos todos, vindos de escolas de samba historicamente ligadas à contravenção e às máfias que dominam o jogo do bicho e as máquinas caça-níqueis, todos negócios ilegais no país, pra não falar de outros crimes que vem a reboque do tráfico e das milícias, e da violência real ali do lado, da falta de planejamento do estado e da incapacidade de enfrentamento das mazelas nacionais.
Também não dá pra esquecer que muitos que hoje vestem a camisa da crítica já usou o uniforme da conveniência cúmplice em outros tempos. É importante também deixar claro aqui que não há a mínima autocrítica, não há uma busca pela redenção ou a inauguração de uma nova realidade. Longe disso.
Mas a verdade é que, mesmo que hoje seja 10, nota 10! Falar mal dos políticos, para essas críticas terem chegado ao samba é porque o momento é de uma crise muito grande e que precisa ser enfrentada com coragem e realismo. Afinal, se a alienação é fundamental pra toda sociedade se reciclar, a apoteose do espírito crítico na era das fake news é mais que bem-vinda.