Opinião

O Caso Calas: a história de um erro Judiciário

Foto: Arquivo Leouve
Foto: Arquivo Leouve

No dia 09 de março do ano de 1762, o francês Jean Calas, um pequeno comerciante de tecidos da cidade de Toulouse havia mais de quarenta anos, um sexagenário, foi condenado à morte pelo assassinato do seu filho mais velho, Marc-Antoine Calas, um jovem forte e saudável.

Como teria sido o “crime” e em que bases se deu aquela condenação?

Bem, no dia 13 de outubro de 1761, jantavam na residência da família o pai, Jean Calas, de 64 anos de idade, sua esposa, seus filhos Marc-Antoine Calas (o mais velho, com 28 anos) e Pierre Calas, além de um amigo da família, Gaubert Lavaisse, de 19 anos, todos protestantes. Na residência também estava uma velha “criada” que trabalhava com a família havia trinta anos, Jeanne Viguière, dedicada empregada católica que ajudara a criar os filhos dos Calas. Findo o jantar, todos foram para uma sala contígua, menos Marc- Antoine, que saiu à rua.

Todos pensaram, então, que ele teria ido dar uma volta pela cidade, como costumava fazer todas as noites. Mas, não: Marc-Antoine foi em direção à loja do pai e, depois, foi encontrado morto, na rua, pelo irmão Pierre e pelo amigo Lavaisse, com sinais de estrangulamento, porém, sem qualquer outra lesão que denotasse algum embate físico. Imediatamente, o irmão e o amigo saíram à procura de ajuda médica e da Justiça, enquanto os pais e a empregada desesperavam-se diante do corpo.

Entretanto, naquele exato momento, alertados pelos gritos de sofrimento vindos da casa dos Calas, populares dirigem-se para a residência deles, iniciando-se ali um clamor público e gritos de que Jean Calas e a os demais naquela casa haviam matado Marc-Antoine, porque eram protestantes e não aceitavam que o rapaz se convertera ao Catolicismo.

No caso específico, aquela simples manifestação foi tantas vezes repetida que logo se tornou unânime, forjando a convicção já impossível de se desfazer: “foram eles”, conclusão a que chegou o Magistrado do caso com base em meros boatos e mexericos e por eles pressionado.

Outros acrescentaram que o morto pretendia fazer abjuração no dia seguinte e que sua família e o jovem Lavaisse o haviam estrangulado por ódio contra a religião católica. Um momento depois, ninguém duvidava mais, relatou Voltaire: “Uma vez excitados, os espíritos não mais se detêm” (in Tratado sobre a Tolerância).

Todos foram presos. Jean Calas foi torturado e executado, sem jamais admitir a autoria do crime. O jovem Lavaisse foi igualmente torturado e não apontou Jean como autor de crime algum, da mesma forma como os demais que estavam naquela casa naquela noite, sendo que todos receberam penas mais brandas (exílio).

Tomando conhecimento do absurdo erro judiciário, Voltaire (que até então não conhecia a família Calas), advogado da “Europa das Luzes”, dedicou-se a provar a inocência dos acusados, abraçando a causa dos Calas, “movido apenas por um espírito de justiça, de verdade e de paz”.

Após três meses de estudo do caso, interrogatórios, diligências e investigações, em 09 de março de 1765 (exatos três anos depois da primeira decisão), por unanimidade, Voltaire obteve uma sentença de reabilitação da memória de Jean. Também toda a família Calas foi declarada inocente, reconhecendo-se que o julgamento foi “iníquo e abusivo”, levado por “indícios equívocos e pelos gritos de uma multidão insensata”, causando “a ruína inteira de uma família inocente.”

Aliás, salvo o apelo popular e a intolerância religiosa impregnada na manifestação popular (era a população que não aceitava a condição de protestante dos Calas) e no julgamento, todas as evidências davam conta de que Jean Calas e os demais não haviam matado Marc-Antoine: por exemplo, como é que todos juntos teriam podido estrangular um jovem tão robusto quanto eles todos, sem um combate longo e violento, sem gritos terríveis que teriam alertado a vizinhança, sem golpes reiterados, sem ferimentos, sem roupas rasgadas?

A prova mostrou, ao fim e ao cabo, que Marc-Antoine se tratava de “um homem de letras: diziam-no um espírito inquieto, sombrio e violento”. Impedido de ser, como protestante, um advogado (como desejava), em razão da religião que professava, inapetente para comércio e tendo perdido uma pequena fortuna no jogo (na mesma noite do suicídio, inclusive), “decidiu acabar com sua vida e fez pressentir esse propósito a um de seus amigos; firmou-se em sua resolução através da leitura de tudo o que até então se escrevera sobre o suicídio”, descreveu Voltaire.

O caso Calas apresenta temas tão atuais como a intolerância religiosa (muito se matou e se mata ainda nesse mundo em nome de Deus ou de outro fundamento religioso. O fundamentalismo religioso é prova disso), assim como julgamentos alicerçados em opinião pública (que é só opinião), não raras vezes fomentadas por meios inidôneos de deliberada conformação de mentes humanas, especialmente em tempos de redes sociais. Não tenho pena de criminosos, mas não me alio a nenhuma forma de injustiça.