Opinião

Tem ou não tem que mostrar?

Confira o artigo semanal da Dra. Silvia Regina Becker Pinto

Foto: Arquivo Leouve
Foto: Arquivo Leouve

Afinal, o Presidente da República está ou não obrigado a revelar, em público, o resultado de seu exame para verificar se foi ou não contaminado pela Covid 19?

Tirando as paixões políticas e ideológicas, a resposta a esse questionamento não é tão simples assim. Só o trâmite que esse assunto está tendo nos Tribunais já faz inequívoca a complexidade da resposta.

Lembram que, cerca de uns 60 dias, o Presidente esteve nos Estados Unidos e que, no seu retorno, vários dos integrantes de sua comitiva positivaram para o contágio do SARS-2? Ele próprio, o Presidente Bolsonaro, teve sintomas de contágio; fez exames e disse que não havia contraído a doença.

A Folha de São Paulo, em conflito conflagrado com o Presidente, ingressou com uma medida judicial na Justiça Federal de Primeira Instância, sendo que uma Juíza decidiu, liminarmente, que ele deveria entregar à Justiça cópia do exame que fez, para conhecimento público do resultado.

Houve recurso ao Tribunal Regional Federal, e o TRF confirmou a liminar, dizendo que era dever do Presidente da República apresentar o resultado do exame para publicização.

No entanto, a Advocacia-Geral da União recorreu ao Superior Tribunal de Justiça, onde a liminar foi cassada: por ora, Jair Bolsonaro estava liberado de apresentar o documento à Justiça Federal. Contudo, a coisa não terminou por aí e foi parar no STF, onde a impressa noticiou que o Presidente da República apresentou o resultado do tal exame.
Ontem, conforme decisão do Ministro Ricardo Lewandowski, o impasse teve aparente fim, com a divulgação do resultado negativado para a Covid 19.

Resta saber se a controvérsia prosseguirá ou não, pois não é de se duvidar que se coloque em causa a cadeia de custódia dessa prova, porque o assunto está em meio a outra pandemia: a das paixões ideológicas e políticas.

Eis que, nesse cenário, é certo que a intimidade e a vida privada são direitos fundamentais. O art. 5º, “caput”, da Constituição Federal assegura que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País (o artigo não fala, mas os só de passagem também) a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Para além disso, o inciso X do mesmo artigo 5.º da nossa Lei Maior diz ainda que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Vejam, portanto, que o artigo é expresso e diz: TODOS. Não faz nenhuma ressalva ao Presidente da República, seja ele Jair Bolsonaro ou não. Dito de outro jeito: até o Presidente da República tem o direito à sua intimidade, à sua vida privada e à sua reserva de segredo, ou seja, manter para si aquilo que, de caráter privado, não deseja contar para ninguém. Lido dessa foram, essa é a resposta.

Ocorre é que esse direito fundamental, em termos abstratos, não é o único nem o mais importante na ordem constitucional, pois não direito mais constitucional que outro. E, ao lado do direito à intimidade e à vida privada, coexistem os direitos à saúde, à segurança de um e de todos, direitos esses que são igualmente direitos fundamentais.

Aliás, nosso Código Penal, a partir do artigo 130, elenca uma série de crimes de periclitação da vida e da saúde pública. Nesse sentido, o CP, em seu artigo 131, diz que é ilícito penal praticar, com o fim de transmitir a outrem, moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio.

No curso dessa Pandemia, não foram poucas as medidas adotadas pelo Ministério Público, a fim de manter isolados aqueles que se sabiam contaminados e não queriam observar o de distanciamento social em nome do direito à liberdade.

Na condição de Acadêmica aprendi e, como Docente, ensinei, que nenhum direito fundamental é absoluto na ordem constitucional. Que eles coexistem em um mesmo sistema e que, topicamente, um deve ser sacrificado para que outro assuma a primazia no caso concreto.

Então, quando um Presidente da República, em meio à Pandemia da Convid 19, participa de aglomerações, abraça pessoas, não raro, sem proteção nenhuma, vocês haverão de concordar que estamos em um outro cenário, porque o seu comportamento já não traz possíveis consequências somente para si. Registro que essa análise é meramente jurídica, nem considera nenhuma paixão ideológica.

Nessa ambiência, entendo que, na medida em que o Presidente participa ativamente de eventos que podem ser compreendidos como “aglomerações”, propícios à proliferação viral, era do interesse público, com primazia, saber se ele estava ou não imune ao vírus pandêmico. A decisão judicial não foi errada. Agora sabemos não está, se o episódio não tiver cenas e próximos capítulos.

O resultado do exame, a partir dessas premissas, é de interesse da sociedade, além de apresentar um valor democrático agregado que até pode militar em favor do homem público. Aguardemos as águas que ainda vão rolar por debaixo dessa ponte.