Memória LEOUVE

Museu das Vozes da MPB

Museu das Vozes da MPB

Escrito por Juliano Fontanive Dupont

Quatrocentas gravações de valor inestimável, com as vozes dos principais músicos, compositores e produtores da música brasileira da época de ouro dos festivais, podem hoje ser ouvidas por todos os apaixonados pela música ou qualquer pessoa interessada na história recente do país. O feito notável é do radialista Vanderlei Malta da Cunha, que, entre 1966 e 1971, realizou entrevistas para o seu programa Domingo e Arte, em Porto Alegre, nas extintas rádio Metrópole e Cultura Am. Todo músico, compositor ou produtor musical que visitasse a cidade era entrevistado. Este acervo, guardado por meio século num armário de casa, tornou-se público para que o poeta Torquato Neto, morto em 1972, falasse novamente.

No ano passado, em reportagem do jornal O Globo sobre o documentário Anjo Torto, acerca da vida de Torquato Neto, os diretores lamentavam a ausência de qualquer registro da voz do poeta tropicalista. Existiam filmes com Torquato, mas sem áudio. Ao ler a matéria, Vanderlei se lembrou da entrevista feita em 1968, nos bastidores do IV Festival da Canção da TV Record, e mandou a gravação para o jornal carioca, que contatou os realizadores do filme. Os diretores não acreditaram no que ouviram. Nem o filho de Torquato, hoje com 44 anos, que ouviu pela primeira vez a voz do pai.

A partir daí a jornalista Mariana Filgueiras foi desvendando, em uma série de matérias, o tesouro de Vanderlei da Cunha. Entrevistas com Marcos Valle, Maria Bethânia, Cyro Monteiro, Elizeth Cardoso, Solano Ribeiro, Wilson Simonal, Caetano Veloso, Rogério Duprat, Gilberto Gil, Elis Regina, e outras passaram a ser comentadas por jornalistas e críticos. Ruy Castro observou como os artistas na época se criticavam sem papas na língua. Elis Regina, no quarto da casa dos pais, metralhava no microfone. Estava “fula” com a “pataquada do rock”, encarnando a porta-estandarte da MPB nacionalista contra o imperialismo da guitarra elétrica. Vinicius sentava o cacete em Geraldo Vandré: “sem originalidade”, e ironizava: “Roberto Carlos às vezes acerta”. Pixinguinha desancou Chico Buarque: “Bom rapaz, faz letras muitos boas. Agora, a música… A música é a mesma coisa. O que ele faz, musicalmente, é sempre a mesma coisa. Não varia muito não. Já a letra é formidável”. Bons tempos, muito antes do compadrio e o elogio mútuo se tornarem a única política entre artistas.

A repercussão frutificou. A Funarte (Fundação Nacional das Artes) propôs a digitalização do acervo com o objetivo de, no futuro, disponibilizá-lo na íntegra, com áudio e texto, no saite da instituição. O diretor da Rádio Cultura fm, da Fundação Padre Anchieta de São Paulo, convidou Vanderlei para voltar ao rádio e contar as histórias das entrevistas, apresentando músicas dos entrevistados ou relacionadas à época. Batizado de Memória Popular Brasileira, o programa vai ao ar domingos, às 14h, mesclando as entrevistas da época com atuais, entremeadas pela boa música. O programa também fica arquivado para audição permanente na página da rádio.

Um ótimo exemplo de como é o programa na Cultura FM é com o produtor Solano Ribeiro, criador pioneiro dos famosos festivais de música brasileira para televisão. Hoje, 47 anos depois, Solano reencontra Vanderlei e comenta sua primeira entrevista. Faz comparações entre aquele fértil período e o momento atual. E relata sobre o programa que inaugurou a era dos festivais televisivos, o 1º Festival Nacional da Música Popular Brasileira, promovido pela TV Excelsior. O nome era tão grande que os jornalistas foram abreviando: 1º Festival da Música Brasileira; Festival Nacional da Música Popular; Festival da Música Popular Brasileira, até que alguns jornalistas começaram a escrever: Festival da MPB, e o termo pegou. Como a música que se estava fazendo à época não era bossa nova nem samba, a abreviatura calhou bem, designando o híbrido de estilos nacionais que se encontrava na música de Edu Lobo, Baden e Vinicius, Chico Buarque.

Muitas gravações de Vanderlei flagram os artistas no momento exato em que se daria uma ruptura estética. É o caso das entrevistas com Duprat, Torquato e principalmente Caetano Veloso, que demonstra uma rara autoconsciência sobre o que fazia. No dia 21 de dezembro de 1967, acompanhado pelos Beat Boys, Caetano fez show em Porto Alegre. Na entrevista, o baiano teoriza o movimento que estava por surgir. É impressionante. Caetano, em 1967, interpreta o que havia ocorrido com a música brasileira desde o surgimento da bossa nova e explica o que estava acontecendo, o que havia de antiquado na música popular e como pretendia atualizá-la em relação ao rock. “A música vulgar internacional é a mais frutífera do momento, a semente das coisas que vão nascer”, falou o baiano que viria a liderar o movimento Tropicalista.

Uma das muitas raridades do museu de Vanderlei é uma gravação caseira de 1961 que registra João Gilberto tocando em um encontro de amigos num apartamento em Porto Alegre. João voltara à cidade para se apresentar ao lado da mulher Astrud. Alguém na casa da família anfitriã gravou em fita cassete o inventor da bossa nova tocando músicas que nunca lançaria em disco. Em 1968, Vanderlei fez, para seu programa de rádio Domingo e Arte, um especial de dez anos da bossa nova, e lembrou-se daquele registro caseiro. Pediu a fita emprestada e por garantia fez uma cópia. Como todas as outras, esta foi mais uma sábia decisão de Vanderlei, e o que restou foi a cópia preservada nos rolos magnéticos.

E há muito mais história. Em 1969, Pixinguinha vem receber a chave da cidade de Porto Alegre, uma honraria aos setenta anos do inventor do choro. Seria sua última viagem antes de morrer, em 1973.

O compositor recebe Vanderlei no hotel em que está hospedado e o convida para tomar um uísque em algum lugar perto dali. Os dois caminham pelas ruas do centro até encontrarem o bar certo. O radialista acomoda o gravador Toshiba de 5 quilos entre os copos e registra a conversa.

Pixinguinha lamentou a morte do choro e criticou os músicos daquele momento, o final dos anos 60, que davam muito valor à letra e se apresentavam fantasiados na televisão. E emendava um causo no outro.

Havia 42 anos desde sua última visita ao sul, ainda como flautista do grupo Os Oito Batutas. Recordou-se de todos os amigos de Porto Alegre, chorões dos anos 20, especialmente Otávio Dutra.

À mesa de um bar que não existe mais, Vanderlei, um rapaz, tomou uísque com o patriarca da música brasileira. E foi generoso para conservar, por quase 50 anos, aquele encontro, para deleite de todos os amantes da música. Preparem o gelo, leitores, pois agora todos podemos tomar deste sagrado uísque.

O futuro foi preservado, enfim.

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