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O direito ao esquecimento

No dia 04 de fevereiro último, começou, no STF, o julgamento de um caso interessante que envolve o seguinte tema: o direito ao esquecimento. A controvérsia coloca em discussão, de um lado, a liberdade de expressão e de informação, e, de outro, o direito à intimidade.

O caso que ora chegou ao STF é um fato ocorrido em 14 de julho de 1958, quando, após uma tentativa de estupro, para simular um suicídio, Aída Jacob Curi, então com 18 anos de idade, foi jogada de um terraço e assassinada, no Rio de Janeiro, precisamente, na Praia de Copacabana, Edifício Rio Nobre, na Avenida Atlântica, nº 3.888.

Mas, vejam que o direito ao esquecimento não é tema novo: o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha já o enfrentou em 1973, é dizer, 47 anos antes da nossa Suprema, no paradigmático “Caso Lebach”.

Isso porque, em 1969, em Lebach, um pequeno lugarejo localizado a oeste da República Federal da Alemanha, houve o assassinato brutal de quatro soldados que guardavam um depósito de munição, tendo um quinto soldado ficado gravemente ferido. Na ocasião, foram também roubadas do depósito armas e munições.

No ano seguinte, identificados autores e partícipes dos crimes, os dois principais acusados foram condenados à prisão perpétua. Já um terceiro acusado foi condenado apenas a seis anos de reclusão, por ter ajudado na preparação da ação.

Decorridos quatro anos do julgamento, a ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen – Segundo Canal Alemão), atenta ao grande interesse da opinião pública no caso, produziu um documentário sobre todo o ocorrido. Nele, seriam apresentados o nome e a foto de todos os acusados. Além disso, haveria uma representação do crime por atores, com detalhes da relação dos condenados entre si, incluindo suas ligações homossexuais. O documentário deveria ser transmitido em uma sexta-feira à noite, pouco antes da soltura do terceiro acusado, que já havia cumprido boa parte de sua pena.

Entretanto, esse terceiro acusado buscou, então, em juízo, uma medida liminar para impedir a transmissão do programa, pois o documentário dificultaria o seu processo de ressocialização. Veja-se que se tratava de condenado em definitivo e que já havia cumprido parte expressiva da pena, estando por sair da prisão. Não era suspeito, não era indiciado nem acusado, senão que alguém que a culpa penal em sentido amplo foi reconhecida, depois do devido processo legal, onde contou com o direito fundamental ao contraditório e a ampla defesa.

Mas a liminar não foi deferida nas instâncias ordinárias. Em razão disso, o condenado apresentou uma “reclamação constitucional” para o Tribunal Constitucional Federal, invocando exatamente a proteção ao seu direito fundamental de desenvolvimento de sua personalidade, previsto na Constituição alemã.

O que buscava, o reclamante, era que o crime, cuja pena já havia sido quase inteiramente cumprida, não fosse revivido pela imprensa, pois isso o traria à memória de toda a sociedade, o que dificultaria sua reinserção social e até a colocação em um novo emprego, fazendo, ainda, uma ponderação no sentido de que não haveria mais interesse verdadeiramente informativo na divulgação.

Comparando o ˜Caso Lebach” ao caso brasileiro, há uma grande diferença, pois quem propôs a demanda não foram os condenados; foi a família de Aída, ou seja, da própria vítima, depois de, em 2004, o crime contra a jovem ter sido amplamente noticiado e revivido pelo programa “Linha Direta”, da TV Globo.

A família de Aída quer a supressão de todas as notícias que foram divulgadas sobre o tema de todos os meios de comunicação e redes sociais, e pretende se ver indenizada por danos morais, argumentando que, além de tristeza e indignação com o crime, o noticiário da época deu notoriedade ao sobrenome Curi, que teria ficado estigmatizado.

Atente, portanto, que, no caso de Aída, quem pede para ser esquecida é a família da vítima (já tão esquecida no sistema e processual penal brasileiro, onde viram meras estatísticas não raro), e não um réu definitivamente condenado.

Registro que a família de Aída não obteve êxito nas instâncias inferiores. Já no STF, foi admitida a sua Repercussão-Geral, de modo que, o que for, agora, decido no Supremo, valerá para todos os demais casos com os mesmos fundamentos e mesma causa de pedir.

O parecer do Ministério Público Federal é pelo improvimento do recurso, o que implica ganho de causa pela TV Globo. Já o voto do Relator, Ministro Tóffoli é no sentido de que o direito ao esquecimento seria a pretensão de uma pessoa de impedir a divulgação – em plataformas tradicionais e virtuais – de fatos ou dados que são verdadeiros e foram obtidos de forma lícita, mas que, por conta da passagem do tempo, se tornaram descontextualizados.

Toffoli afirmou que não há, no ordenamento jurídico brasileiro, um direito fundamental ao esquecimento e afirmou, ainda, que isso afronta a liberdade de expressão, prevista na Constituição que, pelo visto, para ele, encerra e esgota o Direito Constitucional.

No Caso Lebach, examinado pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão, a Corte firmou posicionamento de que, em face do noticiário atual sobre delitos graves, o interesse de informação da população merece em geral prevalência sobre o direito de personalidade do -criminoso”. Porém, deve ser observado, além do respeito à mais íntima e intangível área da vida, o princípio da proporcionalidade se impõe: informação do nome, foto ou outra identificação do criminoso nem sempre é permitida.

A proteção constitucional da personalidade, porém, não admite que a televisão se ocupe com a pessoa do “criminoso” e sua vida privada por tempo ilimitado e além da notícia atual, p.ex., na forma de um documentário. Um noticiário posterior seria, de qualquer forma, inadmissível, se ele tivesse o condão, como naquele caso, em face da informação atual, de provocar um prejuízo considerável novo ou adicional à pessoa do “criminoso”, especialmente se ameaçar sua reintegração à sociedade (ressocialização).

Esse tema, por outros ângulos, permanecerá palpitante. Deixo alguns questionamentos a serem pensados?

Como conformar o direito ao esquecimento de uma vítima que nunca deveria deixar de ser lembrada (cito o caso da criança Paulinho Pavesi, julgado depois de mais de 20 anos em Belo Horizonte-MG, entre 28/01/2021?
Como seria o posicionamento do STF, se o indiciado, denunciado e processado tiver sido absolvido, ou a própria ação penal, por ser entendida absurda, for trancada por Habeas Corpus?
O que teria a dizer sinceramente sobre o princípio da proporcionalidade nos chamados processos-pena, em que responder a um processo por anos já satisfaz o acusador?
Dizer o que é o Direito implica dar, no mínimo, respostas mínimas a esses questionamentos.

Silvia Regina Becker Pinto

Advogada e Professora. (espaço de coluna cedido à opinião do autor)

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