Três vidas

Dizem que cada pessoa tem três vidas: a vida pública, a vida privada e a vida secreta. Não sei, na verdade, quem disse isso, mas quem disse o fez com sabedoria.

Para os estudiosos do Direito Civil e, principalmente, do Direito Constitucional Civil, essa constatação não é propriamente uma sabedoria, mas uma “teoria”: a chamada Teoria dos Círculos Concêntricos, desenvolvida na Alemanha, na década de 1950, com base na doutrina de Heinrich Hubmann e Heinrich Henkel, doutrina que tinha por finalidade inicial diferenciar o caráter público do privado. No entanto, dentro deste último aspecto, o caráter privado, ela acabou por distinguir ou separa a vida privada do segredo.

Podemos até visualizar a expressão “círculos concêntricos”, se imaginarmos três círculos um maior, um médio e um pequeno, um dentro do outro, onde o maior representa a vida pública das pessoas; o médio, a vida privada, ou seja, os aspectos da vida que a pessoa compartilha com poucos; e um menor, mais restrito, no interior dos demais, e representa a reserva do segrego ou sigilo, aquilo que o ser humano não quer compartilhar ou dividir com ninguém. É só seu. Sua vida secreta onde a ninguém é dado o direito de adentrar.

Aprendi isso nos bancos acadêmicos, mas vi a representação viva da Teoria no domingo do Espetáculo do Óscar, 27/03/2022, quando o renomado ator Will Smith, ao ouvir, em público, uma piada de mau gosto acerca dos cabelos da esposa Jada Pinkett Smith (que sofre de uma doença autoimune que tem como consequência a perda dos cabelos, fato que já havia declarado publicamente), piadinha vinda do apresentador e comediante Chirs Rock durante o cerimonial.

Foi um “case”: Will Smith levantou-se, calmamente, de seu assento, foi até o piadista, e nele desferiu um tapa em meio à cerimônia. Voltou ao seu assento e disse: “mantenha o nome da minha esposa fora de sua boca”. Adiante, recebeu o Óscar de Melhor Ator pelo papel desempenhado no filme “King Richard” (interpretando o pai das tenistas Serene e Vênus Wiliams).

Em lágrimas, ele pediu desculpas à Academia e falou sobre o fardo que estava carregando; como sua vida pública lhe exigia sorrir o tempo todo, quando, por vezes, em sua vida privada, sua vontade era de chorar, especialmente naquele momento em que estava emocionalmente abalado, sobrecarregado, vivendo momentos duros, difíceis, que lhe faziam frágil sem poder demonstrar, tendo que sorrir o tempo todo. Ao pedir desculpas, adiante, disse: “O amor vai fazer você fazer coisas loucas”.

O Óscar, naquele domingo, 27 de março de 2022, ganhou um novo capítulo que nos remete a pensar sobre o pensamento inaugural: as três vidas que todos temos e que, em todos os níveis, merece respeito. Politicamente correto? Não. Pensando em civilização, não é assim que se resolvem problemas. Ele quase foi detido. Mas, até que ponto alguém, mesmo um apresentador e comediante famoso tem o direito de fazer piada com aspectos da vida privada e da intimidade da pessoa? Para quê? A quem interessava aquela piada ridícula? Um descaso com o sofrimento humano?

Não instigo nenhuma forma de violência e até acredito que Will Smith irá perder Óscar. Porém, sua dor e sua capacidade de externá-la, naquele ambiente hostil, de piadas sem graça que machucam as pessoas, sua atitude irrefletida, a meu juízo, está plenamente justificada. Talvez eu tivesse feito até pior, me colocando no lugar dele.

Aliás, esse é um grande problema da humanidade: a cada vez menor capacidade do ser humano de se colocar no lugar do outro.