Geral

O paradoxo do mérito

É ótima a ideia de que o nosso destino está em nossas mãos; de que o nosso sucesso não depende de forças para além do nosso controle; que depende só de nós mesmos.

Pensem: essa ideia condensa a perspectiva de que não somos vítimas das circunstâncias, mas, sim, senhores do nosso futuro, mestres de nossa sorte, livres para ascender até onde nossas forças, nossos talentos e nossos sonhos nos levarem.

Michael J. Sandel (in “A Tirania do Mérito”) adverte que esta é mesmo uma visão emocionante da agência humana. Segundo a máxima do “eu quero, eu posso, eu consigo”, se eu me empenhar, vencer nada mais é do que a justa recompensa pelo meu empenho e pelo meu esforço. Logo, isso é justo.

Sim, essa é uma leitura possível do sentido de justiça, inclusive amparada em conclusão moralmente confortante: recebemos o que merecemos. Se o nosso sucesso é o resultado de nossas próprias ações, algo que conquistamos por meio de nosso próprio talento e trabalho árduo, podemos nos orgulhar disso, pois é certo que merecemos as recompensas resultantes de nossas conquistas, de nosso empenho e determinação.

Uma sociedade edificada a estas bases é muito inspiradora. A uma, porque ela afirma uma noção potente de liberdade; a duas, porque ela dá às pessoas o que elas conquistaram por esforço próprio e, portanto, o que elas merecem, segundo a lógica do vencer pelo seu querer, talento e determinação.

Afinal, nada há de errado em ser recompensado por talentos e méritos. Olho para a minha vida e ela confirma o que eu digo. Com meu pai foi assim; comigo foi assim… Abri portas e janelas, entrei pela porta da frente, tudo conquistado com muito empenho, dedicação, coragem, diligência, energia, vigor. Nada foi dádiva, embora toda conquista eu não tenha obtido só pelo meu talento e mérito, mas com o apoio familiar e de amigos, sem os quais jamais teria chegado a muitas coisas que conquistei (e não me refiro só às conquistas econômicas).

Porém, olhando para realidade do mundo, vejo que a meritocracia tem um lado perverso ou alguns aspectos cruéis, e que, no mínimo, ensejam algumas reflexões.

Primeiro, do ponto de vista antropológico e psicológico, ela impõe o dever de vencer pelo próprio esforço, o que é, por toda parte, um fardo muito difícil para a grande maioria carregar, inclusive porque pressupõe que somos, cada um de nós, os únicos responsáveis pela nossa sina, encarnando a noção de que sempre, invariavelmente, o nosso destino reflete o nosso mérito, ideia tão arraigada nas instituições morais de nossa cultura ocidental.

Implica dizer que, se a pessoa não venceu na vida (e o que é vencer na vida é matéria para outra coluna ou, talvez, para um livro), é porque foi desidiosa, não se empenhou o suficiente, não teve talento, não mereceu, por mais que tenha trabalhado noite e dia, todos os dias da semana, mês e ano, mas não foi suficiente para ser recompensado. Não teve mérito. Não teve capacidade. É um fracassado…um perdedor.

E aqui se coloca, também, a situação daqueles seres humanos desprovidos, por problemas físicos ou mentais, de, pelo seu próprio negócio,  esforço, conquistarem o que quer que seja, porque totalmente dependentes de outras pessoas e sem aptidão para gerir a própria vida.

Ainda, reparo na realidade de muitos países e lugares miseráveis, em especial, alguns da África, onde falar em talento, vocação, disposição e mérito é por demais falacioso, pois a luta pela sobrevivência e contra a fome não lhes permite conhecer a ideia de livre arbítrio, que não passa de uma quimera: entre o dia e a noite, só lhes resta que alguém lhes ajude a se manterem vivos. Costumamos ignorar esses cenários – que existem -, porque nos fazem mal ao espírito.

A meritocracia, em outro giro, conflita com a ideia de que temos responsabilidades não só pelo nosso próprio destino, mas, também, pelo destino de nossos semelhantes, não obstante nossa mútua dependência e vulnerabilidade desde a nossa concepção até a nossa velhice. Quando a vida é mais frágil.

No campo Teológico – que também renderia outra coluna -, o tema igualmente acende muitas reflexões, especialmente sob o ponto de vista da recompensa e do castigo, da dádiva, e de um Deus justo, que ama, em tese, seus filhos por igual, igualdade que não se reflete na vida cotidiana das pessoas (embora, em substância, sejamos todos iguais).

Muitos podem aí questionar: se o homem não é responsável, ele mesmo, pela sua sina, estando a dádiva nas mãos de Deus, detentor exclusivo do poder de recompensa e castigo; se Deus é bom e justo, como pode ele permitir o sofrimento e a dor que ele poderia evitar?

Mas Deus seria, como a imagem antropomórfica sugere, um ser que passaria a maior parte do tempo respondendo solicitações de seres humanos, recompensando sua bondade e castigando seus pecados, podendo até ficar em dívida com alguns (bons, que não conseguem vencer pelo esforço e talento, embora sejam honestos e trabalhadores esforçados a vida inteira)?

Desconfio que, ao longo do tempo, o mérito tenha descambado para um individualismo egoísta antropológico, radicado na ideia de cada um por si. Tenha sido ressignificado pela Economia. E Deus? Deus é mistério. Depende de fé de cada um e não se explica, ou se autoexplica e muitos não o veem.

Silvia Regina Becker Pinto

Advogada e Professora. (espaço de coluna cedido à opinião do autor)

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