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A dualidade de mundos em Santo Agostinho

A Era Cristã constitui um marco no processo de afirmação histórica na construção do humanismo, das ideias em torno da condição humana e de uma dignidade que lhe é inerente e inata. Também no Cristianismo irá se desenvolver a noção de pessoa e, por isso, será igualmente um marco de afirmação da solidariedade não apenas como princípio da ordem cristã, mas, também, como princípio das ordens social, jurídica e política, justamente por ser no Cristianismo que se engendra o conceito de pessoa que a Antiguidade havia desconhecido.

A partir da Era Cristã, passou-se a pensar em uma unidade em Cristo, independente de que sociedade política se tratasse. Já não se pensava nos homens como iguais porque eles tinham uma natureza comum, mas, sim, porque eram todos filhos de Deus, criados pelo mesmo pai, o Criador de todas as coisas. O Direito Natural se distancia da noção de uma Lei Natural cósmica, para se assumir como uma Lei sacralizada.

E o Deus Cristão é muito diferente do Deus Estoico, porque ele é modelo de pessoa para todos os homens, e se fez carne, por meio de seu filho, Jesus Cristo (completamente divino e completamente humano). É possível conversar com ele, por meio de oração, e pedir que ele nos atenda. Ele se dispõe a nos ouvir e, para além do universo dos gêneros e das espécies, ele ainda cuida de cada um de nós, detendo, ainda, o monopólio sobre a nossa vida e a nossa morte, ou seja, sobre o nosso destino e sobre todas as nossas coisas. É onipotente, onisciente e onipresente. O homem reflete a própria divindade.

A repercussão jurídico-político do Cristianismo surgiu no âmbito da Patrística, nos Séculos II a VI da Era Cristã, em período após a Antiguidade Clássica e início da Idade Média, quando da institucionalização do Clero. Ela tem esse nome em referência a “pais”, porque envolveu os primeiros idealizadores da Teologia Cristã e dos dogmas da Igreja Católica. Seu exponencial doutrinador foi Aurélio Agostinho de Hipona ou, simplesmente, Santo Agostinho (354-430), Bispo Africano de Hipona cujo pensamento foi profundamente marcado pela influência da Filosofia Platônica e pelo Estoicismo de Cícero e Sêneca e, por isso, pode ser compreendido como um neoplatônico.

Santo Agostinho não tinha uma vida religiosa desde o início. Teve companheira e, inclusive, um filho; depois é que se converteu cristão (como ele explica em “Confissões”). Antes de se converter, Santo Agostinho era Maniqueista (uma crença que propunha um dualismo entre o bem e o mal a controlar o mundo e que acreditava que o mal era uma ser). Adiante, conheceu o Cristianismo por meio de Santo Ambrósio, isso já por volta de seus 30 anos. Interessou-se por Platão (por isso, é neoplatônico). Porém, como não falava Grego, Santo Agostinho leu Platão por meio de traduções e de reinterpretações de Platão realizadas por Plotino e Porfírio.

O Bispo de Hipona também acreditava, tal qual Platão, numa dualidade de mundo, o do corpo (o mundo material) e o da alma (mundo espiritual), e ocupou em verificar como o ser humano tinha acesso a Deus, ou seja, como se realizava a transposição entre esses dois mundos, é dizer, entre o ser humano imperfeito, finito e mortal, e o Divino, perfeito e imortal (aqui, uma vez mais, se vê a Teoria do Conhecimento).

O amor, para ele, tem relação com o Divino. Ser feliz é possuir a Deus, e não coisas nem pessoas. Desejar algo perecível para obter felicidade é incompatível com a verdadeira felicidade. Bens e pessoas não podem ser objeto da felicidade. Felicidade é viver bem, e viver bem é Sabedoria.

Santo Agostinho preocupou-se sobremaneira em com explicar o bem e o mal. Ora, se Deus – que é soberanamente bom – criou todas as coisas, inclusive o homem, e há no homem o mal, de onde veio esse mal? Do Criador? Para Santo Agostinho, não. O mal é simplesmente a ausência do bem. O mal é a privação do bem. Porém, existe, ainda, o “Mal Moral”, o que Santo Agostinho explica na sua obra “Livre Arbítrio” como o fruto da vontade má. Deus não criou o mal. Deus conferiu ao homem o livre-arbítrio; o mal é um desvio do bem pelo livre arbítrio do homem. Quanto mais homem se fasta de Deus, mais ele se aproxima do mal. O mal é a ausência de Deus.

Com efeito, Santo Agostinho é o Teórico do Livre Arbítrio. Pregava que Deus deu ao homem a capacidade de escolhas dos passos que ele queira seguir e decidir o que fazer de sua vida. Livre arbítrio nada mais é do que a possibilidade de realizar qualquer ação. Liberdade, nesse sentido, é o uso do Livre Arbítrio de maneira condizente com o bem. Mas, atenção: nem toda a ação livre conduz para a liberdade. Más escolhas e ações más podem conduzir até mesmo à escravidão (exemplo: uso e dependência de drogas).

A Verdade (como ele diz em “Confissões”), só existe no Mundo Etéreo, que somente podemos aceder com o apoio do Divino. Conforme Santo Agostinho, todo conhecimento humano é limitado. O ser humano é dádiva Divina. Para que o homem possa aceder a Deus, ele terá que conhecer o bem e fazer o bem.

Entretanto, depois da queda da Cidade de Deus (Mundo Etéreo), o ser humano está com sua vontade debilitada; com uma inclinação para o mal, não conseguindo fazer o bem que quer, mas conseguindo fazer o mal que não quer. Desse modo, para querer o bem e para realizar o bem, o ser humano precisa do auxílio da graça, um apoio Divino que não substitui o livre arbítrio, mas dá condições para o ser humano alcançar o bem, especialmente, o Bem Superior que é Deus.

Santo Agostinho foi o primeiro pensador Político da Igreja e, para a Filosofia do Direito, foi o primeiro a definir a ordem como “a disposição das coisas iguais e desiguais”, correspondente a dar a cada um segundo o seu lugar. Vê o homem como como um animal racional criado por Deus à sua imagem e semelhança, em que pese mortal, disso extraindo a ideia de unidade humana, o que a doutrina costuma referir como a pré-história da dignidade humana ou sua primeira fundamentação. Deus, ao criar o homem, dotou-o de razão e de inteligência (por isso superiores a todos os demais animais), sendo este o ponto de contato entre Deus e os homens.

Tocante à Política, o Bispo de Hipona vê o Estado (Cívitas) como uma harmônica multidão de homens unidos por um vínculo de sociedade; essa comunidade política é uma instituição de Direito Natural, que se forma pelo agrupamento de famílias, contribuindo para uma sociedade maior, uma comunidade de linhagem humana, segundo uma compreensão de uma ordem universal, e de paz como fruto da tranquilidade da ordem.

Justiça para ele é Equidade. Quando Santo Agostinho se refere à igualdade, ele efetivamente a toma como sinônimo de equidade; ela tem o significado de identidade, mas não apenas como dar a cada um o seu lugar correspondente, mas, também, uma distinção pertinente às coisas, distinção que não se alcança se todas as coisas forem iguais. Logo, a justiça não é possível sem algumas disparidades e dessemelhanças conforme se observa nas coisas. Assim, a Justiça não pode prescindir de um olhar sobre as semelhanças e sobre as diferenças das coisas.

Não obstante, tais diferenças nunca legitimaram, em Santo Agostinho, a escravidão, que nunca compreendeu (como Platão e Aristóteles) como uma instituição natural: quando Deus dotou o homem com a capacidade de dominar os seres irracionais, não lhe conferiu nenhum poder para dominar outros homens. Nenhum homem é servo de outro. A escravidão tem origem no pecado, e não na natureza.

Na obra, Santo Agostinho fala de um homem anterior, dotado de consciência moral e livre arbítrio, fase em que a sociedade humana teria conhecido uma fase majestosa, esplendorosa, obedecendo fielmente ao Direito Natural (divinizado), época em que os homens eram iguais, puros, imortais, plenamente felizes e fraternos. A Lei Natural nada mais era do que o reflexo da Lei Divina. Porém, com o advento do Pecado Original (o primeiro pecado), o homem decaiu da Cidade de Deus para a Cidade Terrena, vindo a conhecer a miséria, a morte e o sofrimento. Tudo isso como responsabilidade da autonomia da vontade, com a prática do pecado.

Assim, o Direito, o Estado e suas Instituições foram criados justamente em função dessa nova condição. O Estado tem por função promover a paz e o Direito Positivo a Lei Eterna que é a Lei de Deus (e, por conseguinte, a Lei da Igreja, superior ao Estado).

Justiça aqui também é assumida como virtude, elemento que o Filósofo entende como essencial ao Direito: onde não há verdadeira justiça não poderá haver verdadeiro Direito, assim como não concebe que exista Povo ou República sem que haja igualmente justiça: sem justiça, os reinos não passam de grandes quadrilhas de ladrões, pois não existem verdadeiros Estados sem justiça nos seus governos.

Espero ter contribuído um pouco para o entendimento de nossos dogmas e de coisas que formos aprendendo sem muita contextualização, e que fazem parte de nossas crenças, nossa fé, e fé é Mistério.

Silvia Regina Becker Pinto

Advogada e Professora. (espaço de coluna cedido à opinião do autor)

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