Opinião

A verdade e o caso Isabella Nardoni

Foto: Arquivo Leouve
Foto: Arquivo Leouve


Será que a verdade é multifacetada e ela depende de que lado ela nos é apresentada? Cada um tem uma para chamar de sua? Vejam que a resposta não é assim tão fácil.

Protágoras de Abdera, 481 a.C.-411 a.C., sofista dos idos da Grécia Antiga, já afirmava que sim; que “o homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, e das coisas que não são, enquanto não são”. Em outras palavras, seria algo mais ou menos assim: as coisas são para mim como eu as vejo; e, para ti, como tu as vê. Subjetivismo puro, sem espaço para valores objetivos.  Teríamos que perguntar: a verdade de quem?

Então, nesse contexto, também não há de existir valores universais, imutáveis e atemporais. Essa postura expressa bem o relativismo tanto dos Sofistas em geral, quanto o relativismo do próprio Protágoras: se o homem é a medida de todas as coisas, logo, coisa alguma pode ser medida para os homens, ou seja, as leis, as regras, a cultura, tudo deve ser definido pelo conjunto de pessoas, por consenso, independente do conteúdo, pois aquilo que vale em determinado lugar não deve valer, necessariamente, em outro.

Nessa proposta “filosófica”, nada é verdadeiramente certo ou verdadeiramente errado. Ganha a discussão quem vence o discurso, e não quem tem razão. O discurso do mais forte, do mais preparado, ainda que no exercício de uma absoluta apatia moral.

Pensei nisso ao terminar de ler uma obra de Ilana Casoy (“Casos de Família”) – que ganhei de Dia das Mães de Fernanda Becker de Moura e de Guilherme Augusto Naud de Moura -, onde a autora aborda dois casos criminais rumorosos, o Caso Richtophen e o Caso Nardoni. Minhas reflexões envolvem a “verdade” justamente deste último caso.

O assassinato de Isabella Nardoni ocorreu no dia 29 de março de 2008 e chocou o país. Naquele dia, um sábado, por volta das 23h49min, na Rua Santa Leocádia, n.º 138, na Vila Izolina Mazzei, em São Paulo-SP, conforme a denúncia, Alexandre Alves Nardoni e Anna Carolina Trotta Peixoto Jatobá, em comunhão de vontades e conjunção de esforços, por meio cruel, mediante recurso que dificultou a defesa da ofendida e no propósito de garantir a ocultação e a impunidade de crime anterior, mataram, por ação de agente contundente e por asfixia mecânica (esganadura), a criança Isabela Nardoni (de seis anos de idade incompletos), filha do primeiro acusado.

Alexandre e Anna Carolina foram processados e condenados, definitivamente, pelo Tribunal do Júri, pela prática do homicídio, nos termos acima, além de terem sido condenados pela prática do crime de fraude processual.

Mas a Defesa, e aí reside o foco da reflexão, sustentou o tempo todo, com veemência e convicção, a tese de negativa de autoria: Alexandre e Anna não foram os autores do crime. Um terceiro, não identificado, teria entrado no apartamento de n.º 62 do Edifício London, cortado, com uma tesoura, a rede de proteção da janela de um dos quartos, e defenestrado a menina, jogando pela janela do apartamento.

O Promotor de Justiça Francisco Cembranelli refutou por completo a tese:  para ele, além das provas não deixarem dúvida de que Alexandre e Anna mataram Isabella, a tese da Defesa era improvável, ilógica e fantasiosa: o terceiro teria que ter entrado no apartamento, sem arrombar a porta, no intervalo de tempo em que Alexandre Nardoni desceu para a garagem (para, em tese, buscar os demais filhos e Anna Jatobá); nesse ínterim, Isabella teria que ter acordado, reconhecido o indivíduo que, para escapar, sem levar nada, teria que eliminá-la. Mas ele não a deixaria morta na cama, como se estivesse dormindo (de sorte que, talvez, seu crime somente fosse descoberto no dia seguinte), mesmo na premência de fugir.

Além disso, nessa lógica improvável, esse terceiro teria preferido esganá-la, corrido até a cozinha, para pegar uma tesoura, cortar a tela de proteção da janela e arremessar pelo buraco a menina, de modo que seu corpo fosse cair bem ao lado da Corregedoria da Polícia Militar, chamando, assim, bastante atenção para o crime e para a fuga.

Sem prejuízo, em meio à manobra, ele teria que ter tirado os sapatos para agir, porque as únicas marcas de solado encontradas no interior do apartamento eram as do pai de Isabella. Ainda, num gesto inusitado de solidariedade (bandido bonzinho aquele), em que pese o apartamento estar de pernas para o ar, como apurado em perícia, antes de Alexandre Nardoni retornar, ele teria resolvido limpar o sangue de Isabella gotejado desde o hall de entrada no apartamento e, com a mesma generosidade. Mais: embora as inúmeras roupas sujas espalhadas pela casa, teria escolhido colocar uma única fralda, manchada de sangue, segundo o perito (Jatobá insistiu em dizer que era achocolatado), de molho na água com amaciante.

E a verdade da Defesa? Foi ali apenas para exercer uma espécie de dom da imaginação? Promover um engodo? Muitas vezes, senti isso enquanto Promotora de Justiça. Mas senti, lendo o relato da instrução de Plenário e dos Debates, no Caso Nardoni, que o Advogado Roberto Podval (e equipe) defendeu com toda honradez e veemência sua tese. Apontou defeitos na condução do inquérito policial que, não obstante tenha sido de excelente qualidade, tinha, sim, as falhas pontadas pela Defesa: as chaves do apartamento não foram efetivamente periciadas para saber se foi ou não o objeto utilizado para produzir as lesões na testa de Isabella (em tese, produzida com um anel); não foi colhido material debaixo das unhas dos acusados, para apontar se e qual deles teria esganado a menina Isabella.

A par disso, não periciaram a camiseta que usava, na ocasião, Alexandre Nardoni, de forma a comprovar que a substância nela existente era o vômito da filha. Nela, igualmente, não havia sido detectado sangue: como havia pingado sangue em vários lugares do apartamento, por onde Alexandre teria passado com a menina no colo, sem que houvesse sangue nas vestes dele ou nas de Jatobá?

Ele não estava errado em suas colocações, embora eu mesma, à vista dos relatos, como os Jurados, teria condenado ambos os réus.

Um advogado deve acreditar no que faz e deve ir para o Júri com a convicção de que um acusado necessita de defesa efetiva, porque ela está ligada a um valor supremo do homem: a liberdade. As pessoas, por vezes, confundem o trabalho do advogado (Podval foi vaiado em frente ao Foro durante os cinco dias de duração do Júri), como se ele defendesse o crime. Acaso quereríamos e estaríamos satisfeitos em retroceder, para os fins de condenar alguém sumariamente, sem que tenha o direito de defender? Estaríamos felizes em punir nesse contexto? Seria legítimo?   Logicamente não.

Todavia, no Caso Isabella Nardoni, penso, com o devido respeito, no campo teórico (porque não vivi aquela realidade), que houve uma falha na escolha da tese defensiva, porque não há duas verdades, e o fato ululante e óbvio é que Alexandre e Jatobá mataram a menina e a jogaram pela janela do apartamento, quando estava ou dormindo ou inconsciente, como apurou a prova pericial. Fazer uma defesa dentro do defensável parece-me sempre a melhor saída. É como penso, quando aceito uma causa criminal que passa pelo meu filtro moral (nem todas aceito).